“Não tínhamos
liberdade, por exemplo, sequer para vestir as roupas que queríamos. Quase
sempre ou sempre tínhamos que nos contentar com as que ‘eles’ queriam. O
intuito, eu acho, era estabelecer um padrão. Bom, você sabe, padrões servem
para aniquilar as individualidades, as particularidades. Não foi só com as
roupas que eles fizeram isso. Criaram um padrão pra tudo, uniformizaram. Isso,
essa é a palavra: uniformização. É isso que eles tentaram fazer, em todos os
aspectos. É claro, você poderia tentar ‘sair da caixinha’, mas a pergunta é: a
que custos? Para sofrer um ostracismo? Ou passar uma imagem errada de si?
Outra coisa
que eles tentaram controlar era nossa alimentação. Inventavam umas teses
científicas malucas para comprovar que nossos produtos eram melhores do que os
do lado inimigo, e que tínhamos que consumir determinados alimentos em
detrimento de outros – claro, isso era só para nos fazer consumir o que ‘eles’
nos davam, até porque não tínhamos muita escolha. Mas muitos de nós se
orgulhavam, dizendo que nós éramos o povo mais bem alimentado do planeta, ainda
mais em épocas como aquelas. Havia também umas ideias de que não se devia comer
por prazer, mas por necessidade. Ideia compatível com a ideologia deles,
principalmente se voltarmos a pensar na aniquilação do indivíduo – por extensão,
de seus prazeres – que eles propagavam, embora não assim abertamente, é óbvio:
eles faziam parecer científico, espiritual e até mesmo, paradoxalmente, gerador
de prazer: o prazer de ter controle sobre seu corpo.
Também não
podíamos sair de casa a hora que quiséssemos. Quer dizer, em tese, podíamos,
mas quem se arriscaria? Um colega um dia atrasou-se em um dos seus compromissos
e não conseguiu chegar à sua casa antes do ‘toque de recolher’ (não era assim
que eles chamavam, mas era isso o que era). Ele acabou sendo confundido com um
inimigo do Estado e preso. Ficou apenas 2 dias, mas e o trauma? Bem, é, 2 dias
na prisão por nada! Ele explicou-se, chamou advogado e tudo, mas é que as
coisas por aqui eram burocráticas demais, sabe?! Eu e Yolanda, as únicas
mulheres, do grupo sempre nos recolhíamos pelo menos uma hora mais cedo do que
os homens. Aquela ideia de que pegam mais leve com as mulheres é totalmente
falsa, não queríamos nos arriscar.
Ah, tem muito
mais situações que poderia contar pra vocês, pra ilustrar a nossa falta de
liberdade. Mas vocês tem uma ideia de que a repressão era muito escancarada. Bom, em
alguns casos sim, mas em outros… Por exemplo, a liberdade de expressão, da qual
vocês se gabam tanto. Não é que não pudéssemos falar o que pensávamos, mas não
falávamos porque sabíamos que alguém podia ouvir e podia complicar pro nosso
lado. A gente tinha ciência de que o Estado tinha controle sobre todos nossos
meios de comunicação. Então você podia dizer o que quisesse, mas aí
vinham as consequências… (risos). As consequências, eu acho, pareciam até
depender de sua sorte. Alguns companheiros foram presos por se posicionarem
contra o autoritarismo do Regime, um deles foi executado. Em outros casos, o
ostracismo ou o ‘exílio na multidão’ ao qual eram relegados aqueles que se
posicionavam contra o Regime, era o pior castigo: eram considerados traidores
da pátria, indignos de pertencerem ao povo; alguns eram considerados loucos.
Todos, absolutamente todos, eram vistos como páreas, até mesmo por suas
famílias. Uma maldição, uma ‘ovelha negra’, como vocês dizem…
O Regime nos
inculcava que esses caras eram ‘rebeldes sem causa’, afinal, o que mais
poderíamos querer? O melhor governo do mundo era o nosso!! Pelo menos era isso
que nos diziam.. Se acreditávamos? Ora, veja, não nos considere ingênuos, mas é
que crescemos nessa cultura de crer nisso, além do mais, todos os dias os
jornais despejavam sobre nós atrocidades cometidas pelos outros governos, nos
países inimigos, e logo em sequência nos mostravam os progressos que nosso país
estava tendo, graças ao Regime. Como íamos saber que todos aqueles noticiários
eram dominados completamente pelo Regime? Bom, até havia algumas acusações
disso, mas elas partiam daqueles que considerávamos inimigos do povo,
traidores.
Além disso, as
atrocidades cometidas pelos outros governos, do lado inimigo, eram suficientes
para tirar da nossa cabeça qualquer ideia que do outro lado pudesse ser
razoavelmente bom. E nós só fomos saber das atrocidades que nosso próprio
governo cometia muito tempo depois. Foi realmente triste quando soubemos, nós
amamos esse povo, essa terra… E ver todo esse sofrimento e o quanto fomos
iludidos não foi fácil. Na verdade, acho que o que mais dói é que todo esse
sofrimento estava bem aos nossos olhos o tempo todo, mas estávamos tão
deslumbrados pelo que o Regime nos oferecia, que ficamos cegos! Sim, não éramos
ingênuos, mas fomos iludidos… Pelas promessas, pelo progresso, pelas ideias,
enfim, fomos convencidos de que o nosso Regime, por mais que apresentasse
algumas falhas, era o melhor de todos os outros que tínhamos como opção.”
Bom,
o relato fictício que escrevi acima parece ser um típico relato, talvez bastante moderado e sutil, de alguém que
viveu num regime autoritário, certo? Acho inclusive que já li várias coisas do
tipo sobre regimes socialistas. E é, realmente, plausível. Minha intenção não é
fazer apologia nem “des-apologia” de nenhum tipo de governo, mas apenas pensar.
A verdade, meus caros, é que, com uma boa dose de liberdade poética, coloquei
no texto acima as minhas inquietações. Sim, as inquietações de uma pessoa
mediana que vive numa sociedade capitalista e democrática. Parece absurdo? Leia novamente o texto, mas agora com essa ideia na cabeça: o relato é
sobre nós, não sobre “eles”.
Um comentário:
Pensei bastante ates de escrever. Nos últimos dois anos não assisti televisão com regularidade, nao fiz assinatura de um gde jornal ou revista semanal. Acho que o principio da liberdade é acima de tudo escolha e esta não nos é dado exercitar.
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